sexta-feira, 11 de abril de 2014

E se as pessoas só pudessem ter um filho?



E se as pessoas só pudessem ter um filho?

A política do filho único poderia ser a solução para um mundo à beira do colapso. Se a regra vingasse por muitas gerações, seria um mundo mais velho e bem mais vazio. Após um par de séculos, as crianças nem saberiam mais o que é "irmão".


Ela caminha, ele resmunga "Achei que o nosso trabalho da faculdade ia ser sobre icebergs. Ela não reage, ele segue. "Ou petróleo. Ou cinema. Mas você insistiu para que fosse sobre irmão. Por quê?" "Ó: quanto antes a gente começar, antes a gente termina." Derrotado, ele lamenta. "Odeio aula de História."
Ele e ela nasceram em uma realidade singular: nesse mundo, todos são filhos únicos. Começou como exemplo, se tornou obrigação e, passado tanto tempo, é como as coisas são. A semana tem sete dias, as pessoas só tem um filho.
No começo do século 22, era isso ou o apocalipse. As previsões otimistas falharam: 20 milhões de habitantes exauriram o mundo. Espécies extintas semanalmente. Mesmo com países inteiros transformados em pasto e lavouras, faltava comida. Mesmo com os rio amazônicos apropriados pela ONU, faltava água. O avanço científico e tecnológico não era mais capaz de suprir a demanda da humanidade.
Foi quando a Austrália decidiu ressuscitar a política do filho único, abandonada oficialmente pela China desde a revolução democrática de 2049. As regras eram rígidas e valiam para todos os residentes, cidadãos e imigrantes. Após o primeiro parto, as mulheres eram esterilizadas. O pai, quando identificado, também. Quando segundos filhos fossem descobertos, quem arcava com as consequências ram os adultos responsáveis - uma ferramenta que se demonstrou extremamente eficaz em coibir nascimentos ilegais. Valendo-se de isolamento geográfico e armas nucleares, o país resistiu às sanções e ao desprezo internacional.
Após décadas como escórias do mundo, a Austrália passou a colher e divulgar resultados. Com menos gente, havia lugar para fauna - coalas e cangurus foram recriados em laboratórios e soltos na natureza. A previdência, reformulada e vitaminada por recursos liberados pela economia com educação, deixou de ser um problema. Cada geração, sempre metade da anterior, contava com mais dinheiro, espaço, opções de emprego - as vagas encerradas eram automatizadas sem atritos. O mundo, à beira de uma guerra mundial de recursos básicos, perdoou a Austrália. E seguiu seu exemplo.
Conforme ele e ela descobrirão em sua pesquisa, registro de revoltas e protestos contra a doutrina foram convenientemente suprimidos dos registro oficiais. Fala-se na Petição dos Pets, que baniu todo e qualquer animal de estimação - alguns consumiam mais que filhos. Acabou também qualquer tipo de oposição ao casamento gay: a união sem reprodução passou a ser mais incentivada de todas. Algumas fontes mencionaram um Massacre dos Gêmeos, mães tendo de escolher um filho só - o fato é que eles desapareceram há tempos.
É verdade que alguns líderes, ansiosos por sobrepujar vizinhos, mandaram seus povos se multiplicarem. Suas nações acabaram sendo atacadas com o controverso gás esterelizantes, ainda ativo em alguns territórios. Ainda hoje, hordas de antirreprodutores fanáticos peregrinam até os locais atingidos para se tornarem estéreis.
E o mundo foi ficando menor. Ou melhor, diferente. Vagas nas escolas viraram camas de asilos. Buffets infantis deram lugares a estúdios de pilates. Universidades pertinho do metrô deram lugar a imensos bingos próximos de trens turísticos. Ídolos adolescentes deram lugar a celebridades da terceira, quarta, quinta idade. Quando alguém cogita derrubar o dogma de um filho só, a resposta é sólida: menos é mais. Por falta de carros, avenidas viraram parques. O trânsito... que trânsito? O crime, com cada vez menos jovens, caiu sucessivamente. Profissão, você escolhe a que quiser - quase uma formalidades, já que máquinas fazem quase tudo.
A população das cidades encolheu, sobram imóveis de todos os tipos. E faz 200 anos que ninguém sabe o que é dividir um quarto - ou qualquer outra coisa. Duzentos anos sem saber o que é ser caçula, mais velho, primo de alguém, sem os escudos e cicatrizes que vêm desse convívio.
Ele acha melhor assim. "Imagina ter de amar mais de um filho. Loucura." Ela tem certeza de que este mundo de filhos únicos é, em vários sentidos muito vazio. Calada, acaricia sua barriga, onde batem dois pequeninos corações.


Texto: Emiliano Urbim
Revista Superinteressante. p. 96-97. Edição 326 - Dezembro/2013

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Ainda pior que a convicção

Quase

Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi. Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cór, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados. Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza. O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém,preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer. Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.
Sarah Westphal